Chama-se Daniele Macchini e é médico no hospital Humanitas Gavazzeni, em Bérgamo, Itália. No meio da crise do novo coronavírus, sem mãos a medir e a ver o vírus a alastrar, fez um relato nas suas redes sociais, que era um grito de alerta sobre a gravidade do Covid-19 e as enormes dificuldades do sistema de saúde - onde já se escolhem os doentes que se podem tratar. O relato, escrito a 7 de março, que aqui traduzimos, é na primeira pessoa. E um apelo fortíssimo a um distanciamento social que é fundamental para conter a propagação.
DANIELE MACCHINI*
"Numa das constantes mensagens de correio eletrónico que por estes dias recebo da minha direção de saúde a um ritmo quase quotidiano, até havia um parágrafo intitulado “agir responsavelmente em sociedade”, com algumas recomendações que só poderão ser apoiadas.
Após ter pensado demoradamente se valia a pena escrever sobre o que vai acontecendo, considerei que o silêncio não seria de todo responsável. Procurarei, portanto, transmitir às pessoas “estranhas à profissão” e mais distantes da nossa realidade, o que estamos a viver em Bérgamo nestes dias de pandemia do Covid-19.
Entendo a necessidade de não se criar pânico, mas quando a mensagem sobre a perigosidade do que está a acontecer não chega às pessoas, ainda ouço que há quem se esteja a borrifar para as recomendações e pessoas que se queixam de que já não podem ir ao ginásio nem fazer torneios de vibrante futebol.
Compreendo ainda o prejuízo económico e também eu me sinto preocupado com ele. Depois da epidemia o drama será recomeçar. Mas, à parte o facto de que do ponto de vista económico também estamos a devastar literalmente o nosso SNS, permito-me dar maior destaque à importância do prejuízo sanitário que se arrisca em todo o país, e parece-me um pouco “arrepiante”, por exemplo, que ainda não se tenha instituído uma zona vermelha, já requerida pela região, para as comunas de Alzano Lombardo e de Nembro (devo precisar que se trata de uma pura opinião pessoal).
Eu próprio assisti com alguma estupefação à reorganização de todo o hospital na semana passada, quando o nosso atual inimigo ainda estava na sombra: as enfermarias de cada piso literalmente “esvaziadas”, as ações de formação interrompidas, os cuidados intensivos libertados para se criar o maior número possível de camas disponíveis. A zona de contenção que tem de estar antes da sala de urgências para criar percursos diversificados e evitar eventuais contágios. Toda esta rápida transformação trazia aos corredores do hospital uma atmosfera de silêncio e de um vazio surreal que não compreendíamos ainda, à espera de uma guerra que ainda não começara e que muitos (entre os quais eu) não tinham grande certeza de que alguma vez nos chegasse com tal ferocidade.
(Abro um parêntesis: tudo isso em silêncio e sem divulgação pública, enquanto diversos títulos jornalísticos tinham a coragem de dizer que a saúde privada não estava a fazer nada).
Recordo ainda a minha vigília noturna de há uma semana, passada inutilmente sem pregar olho, à espera de uma chamada da microbiologia do (Hospital Luigi) Sacco. Aguardava o resultado de uma análise ao primeiro paciente suspeito do nosso hospital, pensando nas consequências que daí adviriam para nós e para a clínica. Quando volto a pensar nisso parece-me quase ridícula e injustificada essa minha agitação perante um único caso possível, agora que já vi o que está a acontecer.
Bom, agora a situação é, por assim dizer, um pouco dramática. Não me ocorrem outras palavras.
A guerra, em bom rigor, já rebentou e as batalhas são ininterruptas, dia e noite.
Um atrás do outro, os pobres infelizes apresentam-se nas Urgências. Têm algo que é bastante diferente das complicações de uma gripe. Bastará dizer que é uma gripe muito feia. Nestes dois anos aprendi que as pessoas de Bérgamo não vêm às Urgências por nada. Também desta vez se comportaram bem. Seguiram todas as indicações que lhes foram dadas: uma semana ou dez dias em casa com febre sem saírem e sem arriscarem contagiar outras, mas agora já não fazem isso. Não respiram o suficiente, precisam de oxigénio.
As terapias farmacológicas para este vírus são poucas. A evolução depende principalmente do nosso organismo. Nós apenas podemos apoiá-lo quando já não se consegue melhor. Espera-se sobretudo que o nosso organismo debele o vírus sozinho, há que dizê-lo. As terapias antivirais para este vírus são experimentais, e todos os dias aprendemos qualquer coisa acerca do comportamento dele. Ficar em casa até que os sintomas piorem não altera o prognóstico da doença.
Mas agora chegou a tal necessidade de camas, com todo o seu dramatismo. Uma após outra, as enfermarias que tinham sido esvaziadas enchem-se a um ritmo impressionante. As tabelas com o nome dos doentes, que têm diversas cores segundo a unidade operacional a que este pertença, agora são todas vermelhas; e no local do procedimento cirúrgico, onde consta o diagnóstico, está sempre a mesma maldita: pneumonia intersticial bilateral.
Ora, expliquem-me qual é o vírus da gripe que causa um drama tão rápido. Porque é essa a diferença (agora tendendo um pouco para o técnico): na gripe clássica, além de se contagiar muito menos população ao longo de mais meses, os casos podem complicar-se com menos frequência, só quando o VÍRUS destrói as barreiras protetoras das nossas vias respiratórias e permite que as BACTÉRIAS normalmente residentes nas vias superiores invadam os brônquios e os pulmões, provocando casos mais graves. O Covid-19 causa uma gripe banal em muitas pessoas jovens, mas em muitos idosos (e não só) dá azo a uma autêntica e propriamente dita SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) porque atinge diretamente os alvéolos pulmonares e infeta-os, tornando-os incapazes de desempenharem a sua função. A insuficiência respiratória que daí deriva é muitas vezes grave, e após poucos dias de internamento o simples oxigénio que se pode administrar numa enfermaria poderá não ser suficiente.
Desculpem, mas a mim, como médico, não me tranquiliza de todo que os casos mais graves sejam sobretudo de idosos com outras patologias. A população idosa é aquela que está mais representada no nosso país e dificilmente se encontra alguém que, acima dos 65 anos, não tome pelo menos o comprimido para a pressão arterial ou para a diabetes. Asseguro-vos, pois, que quando se vê gente jovem ir parar aos cuidados intensivos, entubados, ligados à ECMO ou pior (Oxigenação por Membrana Extracorpórea – uma máquina para os casos mais graves, que extrai o sangue, procede à sua oxigenação e restitui-o ao corpo, na esperança de que o organismo, espera-se, cure os próprios pulmões), toda essa tranquilidade com a vossa juventude vos passa.
E embora ainda se encontrem nas redes sociais pessoas que se gabam de não ter medo e de ignorarem as indicações, protestando por os seus normais hábitos de vida terem ficado “temporariamente” em crise, o desastre epidemiológico vai-se cumprindo.
E já não existem cirurgiões, urologistas, ortopedistas, somos apenas médicos que improvisadamente passam a fazer parte de uma única equipa, a fim de defrontar este tsunami que nos assolou. Os casos multiplicam-se, chegam ao ritmo de 15 a 20 internamentos diários, todos pelo mesmo motivo. Os resultados das análises chegam agora uns a seguir aos outros: positivo, positivo, positivo. De repente, as Urgências estão em colapso. São emanadas disposições de emergência: há que ajudar as Urgências. Uma rápida reunião para aprender como funciona o software de gestão das Urgências e poucos minutos depois já estou lá em baixo, ao lado dos guerreiros que estão na frente da guerra. No ecrã do computador o motivo dos acessos é sempre o mesmo: febre e dificuldade respiratória, febre e tosse, insuficiência respiratória, etc… Os exames, a radiologia, sempre com a mesma sentença: pneumonia intersticial bilateral, pneumonia intersticial bilateral, pneumonia intersticial bilateral. Todos para internar. Alguns são já entubados e vão para os cuidados intensivos. Para outros às vezes é tarde...
Os cuidados intensivos ficam saturados, e onde acaba a terapia intensiva criam-se outras. Cada ventilador passa a valer ouro: os das salas de operação, que agora suspenderam a sua atividade não urgente, transformam-se em postos de cuidados intensivos que não existiam anteriormente.
Achei incrível, pelo menos posso falar pelo HUMANITAS Gavazzeni (onde trabalho) como se conseguiu pôr em prática em tão pouco tempo um aparato e uma reorganização de recursos tão finamente arquitetada para nos prepararmos para um desastre de tal dimensão. E toda a reorganização de camas, de enfermarias, de pessoal, de turnos de trabalho e de funções é constantemente revista, dia após dia, para procurar dar tudo e ainda mais.
As enfermarias que antes pareciam fantasmas estão agora saturadas, prontas a procurar dar o melhor pelos doentes, mas exaustas. O pessoal está esgotado. Vi o cansaço em rostos que não sabiam o que isso era, não obstante as cargas de trabalho já massacrantes que tinham. Vi as pessoas permanecerem além do horário que já lhes fora destinado, fazendo horas extraordinárias que eram agora habituais. Vi uma solidariedade entre todos nós, que nunca deixámos de ir ter com os colegas da Medicina Interna para lhes perguntar “Que mais posso fazer por ti?” ou então dizer “Não te preocupes com aquela enfermaria que eu trato dela.” Médicos que mudam camas e transferem pacientes, que administram terapias em vez das enfermeiras. Enfermeiras com lágrimas nos olhos porque não conseguem salvar todos e porque nos parâmetros vitais dos que estão agora mais doentes se constata um destino já traçado.
Já não existem turnos, horários. Para nós a vida social está suspensa.
Eu separei-me há alguns meses, e asseguro-vos que sempre fiz o possível para ver constantemente o meu filho, mesmo nos dias com noites passadas em claro, sem dormir e adiando o sono para quando estou sem ele, mas há quase duas semanas que voluntariamente não vejo nem o meu filho nem os meus familiares, devido ao medo de o contagiar e de contagiar à sua volta uma avó idosa ou os parentes que sofrem de outros problemas de saúde. Contento-me, pois, com algumas fotografias do meu filho, que olho por entre as lágrimas, e com algumas videochamadas.
Por isso tende paciência, vós que não podeis ir ao teatro, nem aos museus ou ao ginásio. Procurai ter piedade por aquela miríade de pessoas idosas que podereis exterminar. Não é culpa vossa, eu sei, mas de quem vos mete na cabeça que se está a exagerar, e até este testemunho poderá parecer um autêntico exagero para quem está longe da epidemia, mas, por favor, ouçam-nos, tentem sair de casa só para as coisas indispensáveis. Não andem aos magotes a fazer compras no supermercado: é o que há de pior, porque assim há concentrações e torna-se mais alto o risco de contacto com contagiados que desconhecem sê-lo. Podeis ir lá como fazeis normalmente. Se porventura tiverdes uma máscara normal (mesmo daquelas que se usam para fazer certos trabalhos manuais) colocai-a. Não procureis as FFP2 ou as FFP3. Essas terão de ser usadas por nós, e começamos a estar cansados de o repetir. Já tivemos de optimizar a utilização delas só em certas circunstâncias, como sugeriu recentemente a OMS devido à carência desse material em quase toda a parte.
E sim, graças à escassez de certos dispositivos eu e muitos outros colegas estamos seguramente expostos, não obstante todos os meios de proteção de que dispomos. Alguns de nós já foram contaminados, apesar dos protocolos. Alguns colegas contagiados têm por seu turno familiares contagiados, e alguns dos seus familiares debatem-se já entre a vida e a morte.
Estamos onde os vossos medos vos levariam a criar distância. Procurai criar distâncias. Dizei aos vossos familiares idosos ou que sofrem de outras doenças que fiquem em casa. Ide vós levar-lhes as compras, por favor.
Nós não temos alternativa. É o nosso trabalho. A bem dizer, aquilo que faço nestes dias não é propriamente o trabalho a que estou habituado, mas ainda assim faço-o e irá agradar-me igualmente porque corresponderá aos mesmos princípios: procurar melhorar e curar alguns doentes, ou aliviar o sofrimento e as dores a quem lamentavelmente não se pode curar.
Não gasto, pelo contrário, muitas palavras em relação às pessoas que hoje nos chamam heróis e que ainda ontem estavam prontas a insultar-nos e a denunciar-nos. Voltarão a insultar e a denunciar logo que tudo isto termine. As pessoas esquecem tudo muito depressa.
E nem sequer somos heróis presentemente. É o nosso ofício. Já antes arriscávamos algo de mau todos os dias: quando enfiamos as mãos numa barriga cheia de sangue de alguém que nem sequer sabemos se terá HIV ou hepatite C; quando fazemos isso amos aquiapesar de sabermos que tem HIV ou hepatite C; quando nos picamos em algo que tem HIV e andamos durante um mês a tomar medicamentos que nos fazem vomitar desde manhã até à noite. Quando abrimos com a angústia habitual os resultados dos exames feitos em vários controlos após uma picadela acidental, esperando que não tenhamos ficado infetados. Ganhamos simplesmente a vida com algo que nos oferece emoções. Não importa se são boas ou más, basta levá-las para casa.
No fim de contas, procuramos apenas tornar-nos úteis para todos. Agora tentai vós fazê-lo também, mas: nós, com as nossas ações, influenciamos a vida e a morte de algumas dezenas de pessoas. Vós, com as vossas, de muitas mais.
Por favor partilhe e faça partilhar a mensagem. Temos de espalhar a palavra para evitar que suceda em toda a Itália o que está a acontecer aqui".
Este texto foi publicado pelo Jornal Expresso, baseado na publicação em redes sociais do médico DANIELE MACCHINI
*Médico no hospital Humanitas Gavazzeni, em Bérgamo, Itália
e pelo bem de todos nós e com a devida vênia e créditos, o republicamos aqui.
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